quinta-feira, 28 de maio de 2009


Pasquale Cipro Neto


"O time não merece a torcida que tem"


É o famoso caso do "ninguém merece", que se usa para dizer que é muito ruim a missão que se tem de enfrentar


MAIS UMA VEZ, o futebol gerou um espetáculo de pura barbárie. O palco de turno foi o romântico estádio do Fluminense, no Rio. Brucutus, digo, "torcedores" interromperam o treino, agrediram o jogador Diguinho e perpetraram outras imbecilidades.


Mas o protesto não era só barbárie, não. Havia também gotas de civilização, expressas num cartaz em que se lia isto: "O time não merece a torcida que tem". Ou será que é a torcida que não merece o time que tem? Bem, a parte podre da torcida (os brucutus) decerto não merece o time que tem -o time é um milhão de vezes melhor do que ela.


A relação entre o time e a parte civilizada da torcida é outra história (e assunto para os comentaristas esportivos). O meu assunto é discutir, do ponto de vista linguístico, se é o time que não merece a torcida ou se é a torcida que não merece o time.


"Mas não dá no mesmo?", podem perguntar alguns. Sim e não, ou seja, depende. O "Aurélio" registra "merecer" apenas com o sentido de "ser digno de; conseguir em virtude de seus méritos"; já o "Houaiss" diz que "merecer" pode significar "ser digno de; estar, por suas qualidades ou conduta, no direito de obter (benesses, algo bom, vantajoso) ou sujeito a passar por (algo que lhe seja desfavorável, doloroso, desabonador)".


A segunda definição do "Houaiss" talvez decorra da observação do uso efetivo do verbo, que de fato contempla as duas hipóteses (ser digno de coisa boa ou ruim), o que se verifica também em pelo menos outras duas línguas neolatinas (espanhol e italiano). Trocando em miúdos, é o famoso caso do "ninguém merece", expressão que se usa quando se quer dizer que é muito ruim a missão ou tarefa que se tem ou teve pela frente.


Voltando ao tricolor das Laranjeiras, a faixa exposta deixa claro que, para a torcida, o time é inferior a ela. E se a ordem fosse invertida ("A torcida não merece o time que tem")?


Aí, só o contexto permitiria a clara compreensão da mensagem. Poder-se-ia entender que o time é uma lástima, e a torcida, maravilhosa ou o contrário. Parodiando Paulinho da Viola (vascaíno dos bons), "coisas da língua, minha nega". E que coisas!


Essas idas e vindas do sentido de determinadas palavras me fazem lembrar o termo "jus", empregado (pouco, hoje, mas com frequência, outrora) com o sentido de "direito", "prerrogativa legal" ("...que ele Diabo tinha jus antiquíssimo de desesperar toda a gente" -o trecho é de A. Herculano, citado no "Aurélio").


A palavra "jus" hoje é empregada essencialmente na expressão "fazer jus a", definida como "ser merecedor de" tanto pelo "Aurélio" quanto pelo "Houaiss". O problema é que já há muita gente usando "fazer jus a" com o segundo sentido de "merecer" (o de ser sujeito a algo ruim), o que não encontra abrigo nos dicionários (de sinônimos ou de regência). Até prova em contrário, "O time inglês fez jus à derrota" não é construção que se imite ou que tenha apoio no uso formal da língua.
Outro caso interessante é o do verbo "conspirar", que, em tese, significa "tramar, maquinar, planejar (secretamente) contra alguém, contra um governo ou governante etc."


("Conspirava contra o rei"; "Conspirou contra o reitor"), mas hoje já aparece com o sentido de "concorrer, tender (para certo fim), contribuir". A definição é do "Aurélio", que dá este exemplo: "Tudo parecia conspirar para sua felicidade". Coisas da língua, caro leitor. É isso.


[publicada originalmente na fsp]

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