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Nina Crintzs: Eu, o SUS, a ironia e o mau gosto
publicada no blog do Nassif
Há seis anos atrás eu tive uma dor no olho. Só que a dor no olho era,  na verdade, no nervo ótico, que faz parte do sistema nervoso. O meu  nervo ótico estava inflamado, e era uma inflamação característica de um  processo desmielinizante. Mais tarde eu descobri que a mielina é uma  camada de gordura que envolve as células nervosas e que é responsável  por passar os estímulos elétricos de uma célula para a outra. Eu  descobri também que esta inflamação era causada pelo meu próprio sistema  imunológico que, inexplicavelmente, passou a identificar a mielina como  um corpo estranho e começou a atacá-la. Em poucas palavras: eu  descobri, em detalhes, como se dá uma doença-auto imune no sistema  nervoso central. Esta, específica, chama-se Esclerose Múltipla. É o que  eu tenho. Há seis anos.
Os médicos sabem tudo sobre o coração e quase nada sobre o cérebro –  na minha humilde opinião. Ninguém sabe dizer porque a Esclerose Múltipla  se manifesta. Não é uma doença genética. Não tem a ver com estilo de  vida, hábitos, vícios. Sabe-se, por mera observação estatística, que  mulheres jovens e caucasianas estão mais propensas a desenvolver a  doença. Eu tinha 26 anos. Right on target.
Mil médicos diferentes passaram pela minha vida desde então. Uma via  crucis de perguntas sem respostas. O plano de saúde, caro, pago  religiosamente desde sempre, não cobria os especialistas mais  especialistas que os outros. Fui em todos – TODOS – os neurologistas  famosos – sim, porque tem disso, médico famoso – e, um por um, eles viam  meus exames, confirmavam o diagnóstico, discutiam os mesmos tratamentos  e confirmavam que cura, não tem.
Minha mãe é uma heroína – mãos dadas comigo o tempo todo, segurando  para não chorar. Ela mesma mais destruída do que eu. E os médicos  famosos viam os resultados das ressonâncias magnéticas feitas com prata  contra seus quadros de luz – mas não olhavam para mim. Alguns dos exames  são medievais: agulhas espetadas pelo corpo, eletrodos no córtex  cerebral, “estímulos” elétricos para ver se a partes do corpo respondem.  Partes do corpo. Pastas e mais pastas sobre mesas com tampos de vidro.  Colunas, crânio, córneas. Nos meus olhos, mesmo, ninguém olhava.
O diagnóstico de uma doença grave e incurável é um abismo no qual  você é empurrado sem aviso. E sem pára-quedas. E se você tá esperando um  “mas” aqui, sinto lhe informar, não tem. Não no meu caso. Não teve  revelação divina. Não teve fé súbita em alguma coisa maior. Não teve uma  compreensão mais apurada das dores do mundo. O que dá, assim, de cara, é  raiva. Porque a vida já caminha na beirada do insuportável sem essa  foice tão perto do pescoço. Porque já é suficientemente difícil estar  vivo sem esta sentença de morte lenta e degradante. Dá vontade de  acreditar em Deus, sim, mas só se for para encher Ele de porrada.
O problema é que uma raiva desse tamanho cansa, e o tempo passa. A  minha doença não me define, porque eu não deixo. Ela gostaria muitíssimo  de fazê-lo, mas eu não deixo. Fiz um combinado comigo mesma: essa merda  vai ter 30% da atenção que ela demanda. Não mais do que isso. E segue o  baile. Mas segue diferente, confesso. Segue com menos energia e mais  remédios. Segue com dias bons e dias ruins – e inescapáveis internações  hospitalares.
A neurologista que me acompanha foi escolhida a dedo: ela tem  exatamente a minha idade, olha nos meus olhos durante as minhas  consultas, só ri das minhas piadas boas e já me respondeu “eu não sei”  mais de uma vez. Eu acho genial um médico que diz “eu não sei, vou  pesquisar”. Eu não troco a minha neurologista por figurão nenhum.
O meu tratamento custaria algo em torno de R$12.000,00 por mês. Isso  mesmo: 12 mil reais. “Custaria” porque eu recebo os remédios pelo SUS.  Sabe o SUS?! O Sistema Único de Saúde? Aquele lugar nefasto para onde as  pessoas econômica e socialmente privilegiadas estão fazendo piada e  mandando o ex-presidente Lula ir se tratar do recém descoberto câncer?
Pois é, o Brasil é o único país do mundo que distribui gratuitamente o  tratamento que eu faço para Esclerose Múltipla. Atenção: o ÚNICO. Se  isso implica em uma carga tributária pesada, eu pago o imposto. Eu e as  outras 30.000 pessoas que têm o mesmo problema que eu. É pouca gente?  Não vale a pena? Todos os remédios para doenças incuráveis no Brasil são  distribuídos pelo SUS. E não, corrupção não é exclusividade do Brasil.
O maior especialista em Esclerose Múltipla do Brasil atende no HC,  que é do SUS, num ambulatório especial para a doença. De graça, ou  melhor, pago pelos impostos que a gente reclama em pagar. Uma vez a cada  seis meses, eu me consulto com ele. É no HC que eu pego minhas receitas  – para o tratamento propriamente dito e para os remédios que uso para  lidar com os efeitos colaterais desse tratamento, que também me são  entregues pelo SUS. O que me custaria fácil uns outros R$2.000,00.
Eu acredito em poucas coisas nessa vida. Tenho certeza de que o mundo  não é justo, mas é irônico. E também sei que só o humor salva. Mas a  única pessoa que pode fazer piada com a minha desgraça sou eu – e faço  com regularidade. Afinal, uma doença auto-imune é o cúmulo da  auto-sabotagem.
Mas attention shoppers: fazer piada com a tragédia alheia  não é humor, é mau gosto. É, talvez, falha de caráter. E falar do que  não se conhece é coisa de gente burra. Se você nunca pisou no SUS – se a  TV Globo é a referência mais próxima que você tem da saúde pública  nacional, talvez esse não seja exatamente o melhor assunto para o seu,  digamos, “humor”.
Quem me conhece sabe que eu não voto – não voto nem justifico. Pago  lá minha multa de três reais e tals depois de cada eleição porque me  nego a ser obrigada a votar. O sistema público de saúde está longe de  ser o ideal. E eu adoraria não saber tanto dele quanto sei. O mundo,  meus amigos, é mesmo uma merda. Mas nós estamos todos juntos nele, não  tem jeito. E é bom lembrar: a ironia é uma certeza. Não comemora a  desgraça do amiguinho, não.
 
 
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