Steve Jobs e o declínio americano
Rubens Ricúpero
ex-ministro
Pode impressionar como sinal de mau agouro o desaparecimento de Steve  Jobs justamente no momento em que mais se discute o suposto ou real  declínio dos EUA. Se examinarmos, um por um, os fatores responsáveis  pelo longo predomínio dos americanos, a capacidade de invenção e  inovação -da qual Jobs foi a encarnação viva- aparece não só como o mais  indiscutível, mas também o mais difícil de emular e superar.
Li uma vez o artigo de um economista chinês que relativizava o êxito da  China como "fábrica do mundo" e imbatível exportadora de manufaturas. O  artigo lembrava que nenhum dos três produtos que haviam revolucionado o  mercado nos anos recentes -o iPhone, o iPod e o iPad- tinha sido  inventado pelos chineses, embora a fabricação se fizesse na China devido  ao custo. 
Essas três novidades se devem à inventividade de Jobs, mas é óbvio que  sua morte não esgota a capacidade de inventar e renovar que os EUA não  cansam de demonstrar há mais de século e meio. O que me chama a atenção  nos americanos não é tanto o talento para as invenções mecânicas, a  aplicação de avanços da ciência a máquinas e aparelhos que simplificam a  vida cotidiana. Desse tipo de inventor, o símbolo maior foi, sem  dúvida, Edison.
Há, porém, outro tipo de invenções, as intangíveis, como foram, no  passado medieval ou no começo da modernidade, a criação pelos italianos  da letra de câmbio, do contrato de seguro marítimo, da contabilidade de  partida dupla, dos bancos e mais tarde, pelos holandeses, da sociedade  por ações.
Nessa área, os americanos inovaram em quase tudo, a começar pelo  comércio, que quase não havia mudado desde os tempos de fenícios e  gregos. Começaram com as vendas por catálogo e reembolso postal,  passaram para o supermercado, em seguida para o shopping center, o  drive-in, as franquias, o fast food, só para ficar nesses exemplos. 
Muito mais transformadoras e imateriais foram as invenções do cartão de  crédito e do comércio e do caixa eletrônicos. O que essas invenções  trouxeram foi não só a modificação por meios mecânicos de atividades  tradicionais como lavar e cozinhar. Aliadas às inovações no domínio da  recreação e do relacionamento -a TV, as redes sociais na internet-, elas  na verdade recriaram a própria vida, a maneira como as pessoas empregam  a maior parte do tempo e se relacionam.
Inovadores não convencionais, sem diploma, de gostos alternativos como  Jobs são o produto de uma sociedade inquieta que continuamente se  questiona e reinventa a si mesma. Sociedades hierarquizadas e  autoritárias como a chinesa não possuem esse dom para inovar.
Enquanto predominava a destruição criadora ("creative destruction"),  isto é, a inovação que destruía coisas antigas para dar lugar a novas e  melhores, a superioridade americana não corria perigo. Se ela agora está  em jogo, é por causa da criação destruidora ("destructive creation"), a  financeira, aniquiladora de riqueza e geradora de injustiça. 
A ameaça à superioridade americana não vem dos chineses, mas de dentro,  de um modelo que dá mais poder e influência a lobistas corruptos e  banqueiros destrutivos que a criadores como Jobs. 
[publicado originalmente na folha de s paulo nesta segunda]
 
 
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