terça-feira, 19 de outubro de 2010

Os riscos do obscurantismo



Professor Emir Sader

O aspecto mais grave da atual campanha eleitoral é o apelo ao obscurantismo como arma política. Quando tinha se configurado – segundo as cada vez mais questionadas pesquisas – uma maioria em torno de um projeto geral para o país, a oposição tratou de – como disse muito bem uma analista – encontrar um atalho para falar ao povo de outra maneira, buscando deslocar a temática central, em que estaria sofrendo derrota clara.

Foi a tentativa de encarar o tema do aborto sob a ótica mais retrógrada. Justo um partido que se pretendia ilustrado, apelou para as forças mais retrógradas, para tentar explorar os sentimentos mais conservadores de setores significativos da população.

Um avanço da modernidade foi a separação republicana entre a esfera pública e a esfera privada, entre as opções que se referem à privacidade e à liberdade de cada um e aquelas que se referem aos direitos de todos. Ninguém é obrigado a ter uma religião determinada ou mesmo ser religioso, mas todas as formas de expressão religiosa são admitidas e protegidas.

O tema do aborto se prestou para a virada conservadora nos EUA e no mundo. Depois de longa luta, o movimento feminista conseguiu aprovar o direito ao aborto, em diferentes níveis e versões. Em um país como a Itália, por exemplo, se tinha conseguido aprovar, em referendos nacionais, tanto o divórcio, como o aborto, apesar da oposição do governo Democrata Cristão e do Vaticano. Era uma conquista positiva o direito da mulher de dispor do seu próprio corpo e da sua reprodução.

A virada conservadora tratou de inverter as coisas, reivindicando “a vida” contra o aborto, criminalizando os que pregavam o aborto e inclusive os que o praticavam. Tentava-se impor crenças de algumas religiões sobre os interesses gerais. É a lógica dos Estados fundamentalistas – islâmicos ou sionista -, em que não existe o principio republicano da igualdade diante da lei, substituída pelo privilegio da religião dominante. É uma lógica retrógrada, que faz da religião fator de desigualdade, abolindo o caráter laico e republicano do Estado moderno.

Foi nessa onda conservadora que praticamente todos os cargos importantes da Justiça norteamericana foram mudados numa direção conservadora, em que o financiamento das escolas religiosas aumentou exponencialmente às custas das escolas privadas.

A ofensiva gigantesca do Vaticano contra a Teologia da Libertação liquidou uma corrente popular de grande aceitação no mundo católico, facilitando o avanço dos evangélicos e da corrente carismática dentro do catolicismo – ambas com viés fortemente conservador.

Os preconceitos religiosos sempre foram utilizados em campanhas eleitorais brasileiras, seja para tentar a eleição de candidatos laicos, seja para promover a eleição de bancadas de religiosos. Mas, pela primeira vez, pode ser um aspecto decisivo para definir a eleição presidencial, com conseqüências desastrosas para a democracia e o caráter republicano do Estado.

Uma candidatura como a de José Serra, que era dada como morta, de repente se vê guindada ao segundo turno, pelos votos de outra candidata – Marina da Silva -, e sem programa a propor, lança-se a tentar ganhar de qualquer maneira, apelando para o as calunias e a exploração conservadora dos sentimentos religiosos de uma parte da população.

O que está em jogo não são apenas duas candidaturas: é se o projeto de diminuição – pela primeira vez – das desigualdades e da injustiças no Brasil terá continuidade e aprofundamento ou se será brecado e um governo similar aos dos anos 90 voltará ao governo, com os riscos de obscurantismo, repressão, entreguismo e outros tantos retrocessos.

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