sábado, 12 de junho de 2010


Imprensa Lusitana


Blatter é irresponsável

Por Luís Avelãs


Várias vezes - mesmo sabendo que ia ser acusado de preconceituoso, racista e mais não sei o quê - manifestei aqui discordância em relação à realização do Mundial num país como a África do Sul. E se sempre duvidei (e muito) que as coisas pudessem decorrer dentro da normalidade não foi só por causa do que li ou ouvi. Jamais poderia estar de acordo com atribuição de um evento desta amplitude a este país pelo facto de já lá ter estado. E quando digo ter estado, estou mesmo a falar de Joanesburgo. Não significa isto que o resto da nação seja um paraíso para os visitantes (longe disso), mas duvido que muitas cidades no planeta sejam tão perigosas quanto esta.


Lembro-me de quando regressei a casa dar comigo a pensar que, muito dificilmente, voltaria à África do Sul. É verdade que o país tem inúmeras belezas naturais mas, com todo o respeito pelos amantes das paisagens ou dos animais, prezo mais a minha vida. E por mais exagerado que isto possa parecer, quem vai para a zona de Joanesburgo raramente não é importunado. Então quem viaja na condição de jornalista - não conseguindo esconder que transporta computadores, máquinas de fotografar, telemóveis e dinheiro - dificilmente não viverá situações stressantes. Se só lá estiver 3 ou 4 dias (e num relativo anonimato) até pode ser que passe despercebido. Contudo, estar 30 ou mais dias na cidade, usando um "cartaz" ao pescoço a confirmar que é jornalista estrangeiro... só por sorte conseguirá sair de lá a dizer que nunca se sentiu ameaçado. Eu sei que isso é válido para muitas zonas das mais variadas cidades do Mundo, mas ali a probabilidade de haver azar é mesmo maior, porque o perigo espreita em praticamente em todo o lado.


O que aconteceu em Magaliesburgo a alguns camaradas meus, sendo naturalmente culpa dos marginais que preferem viver de expedientes a trabalhar de forma honrada, é responsabilidade de Blatter, o todo-poderoso senhor da FIFA que, num acto de completa irresponsabilidade, ofereceu a organização do evento a quem lhe garantiu mais uns votos, que é como quem diz... a quem lhe assegurou a manutenção do "tacho" durante mais uns aninhos. As autoridades sul-africanas não fazem mais porque tal é quase impossível. Se eles soubessem bem como lidar com estas questões não estariam à espera de um Mundial de futebol para agir.


Blatter não pode ser tão ignorante ao ponto de desconhecer que a África do Sul é um dos países onde mais gente é assassinada todos os dias; onde se praticam actos de verdadeira selvajaria; onde as violações fazem parte do quotidiano dos habitantes ou onde os roubos se sucedem a um ritmo alucinante 24 sobre 24 horas, 365 dias ao ano. Ele sempre teve conhecimento desses dados. E nós também.


O líder da FIFA, como já se esperava, exigiu às autoridades locais que nada de anormal acontecesse às 32 comitivas, aos árbitros e à extensa delegação de cabeças pensantes liderada pelo próprio. E acredito, de facto, que assim seja. Mas, Blatter devia ser o primeiro a ter em atenção que um Mundial também arrasta muitos jornalistas e ainda mais adeptos do desporto-rei. Só que, para esses, o helvético esteve-se (e está) nas tintas.


O que aconteceu num descampado de Magaliesburgo só teve consequências materiais (e seguramente psicológicas), mas o que teria sucedido se uma das vítimas tivesse oferecido resistência ou gritasse por ajuda? Muito provavelmente estaria morta, enquanto os dirigentes da FIFA, hipócritas como sempre, se preocupavam com os eventuais engarrafamentos no dia do primeiro jogo.


Continuo a torcer para me enganar completamente, mas duvido que este Mundial não fique conhecido mais pelo que se passar fora dos relvados do que lá dentro. Mas, para Blatter, não há problema. O dinheiro já está embolsado e, com toda a certeza, nos hotéis onde pernoitar existirão sempre dezenas de polícias a guardá-lo, o que significará que faltarão onde mais são precisos: a defender quem trabalha e quem ajuda a transformar o Mundial num acontecimento milionário e planetário.


PS - Segundo vários relatos, mais quatro jornalistas (no caso chineses) ficaram aliviados dos seus pertences nos arredores de Joanesburgo. .


Autor: LUÍS AVELÃS
Data: Quinta-Feira, 10 Junho de 2010 - 13:10
Record - jornal de Lisboa

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